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Mas a questão que se põe, nesse caso, é a de saber por que e como a criança sofreu, em tal ou tal momento exato, a influência de tais ou tais relações sociais: assim é que a linguagem se adquire numa certa idade e não noutra, segundo uma certa ordem e não uma outra, e só se transforma, pois, em pensamento, na medida em que este se encontra apto a se deixar transformar. Por consequência, não é a vida social em bloco que a Psicologia deve invocar, mas uma série de relações que se estabelecem, segundo todas as combinações possíveis, entre indivíduos de níveis distintos quanto ao desenvolvimento mental e em função de diferentes tipos de interação (pressão, cooperação, imitação, discussão etc.). Em sua última obra, Wallon censura-nos o fato de negligenciarmos o papel da vida social na gênese da representação: “Ele reduz aos fatores puramente individuais da motricidade poderes tais como o uso do símbolo e a expressão do pensamento, que só podem pertencer a um ser essencialmente social, e restringiu de maneira inadmissível os fundamentos da vida mental”3 – assim se expressou Wallon a nosso respeito. Ora, essa objeção é tanto mais impressionante porquanto, num texto anterior,4 Wallon nos acusava exatamente do contrário e queria que os progressos do pensamento lógico explicassem os da cooperação social, ao passo que nos atribuía a opinião inversa. Nós lhe havíamos concedido então que os fatores sociais nada explicam por si sós, se bem que a sua intervenção seja necessária ao desabrochar da razão. Fiel ao mesmo ponto de vista, responder-lhe-emos hoje que se a vida social, evidentemente, desempenha um papel essencial na elaboração do conceito e dos esquemas representativos vinculados à expressão verbal, ela não explica por si só, entretanto, os inícios da imagem ou do símbolo, tal como se observam na imitação diferida ou nos primeiros jogos de imaginação da criança de um ano. E mais: nenhum sociólogo conseguiu ainda demonstrar-nos a origem social dos símbolos “anatômicos” inconscientes com que nos deparamos no sonho, nem das imagens do estado transitório de sonolência! O problema que vamos discutir no presente volume é, portanto, o da própria função simbólica, como mecanismo comum aos diferentes sistemas de representações e como mecanismo individual cuja existência prévia é necessária para tornar possíveis as interações do pensamento entre indivíduos e, por consequência, a constituição ou aquisição das significações coletivas. Isso não implica, de modo algum, que contestemos a natureza social daquelas, muito pelo contrário, pois tentamos constantemente demonstrar que a razão supõe a cooperação e a reciprocidade. Mas o fato social é, para nós, um fato a explicar e não a invocar como causa extrapsicológica. É por isso que o estudo da função simbólica nos parece dever abranger todas as formas iniciais de representação, da imitação e do símbolo lúdico ou onírico até ao esquema verbal e às estruturas pré-conceptuais elementares. Só então a unidade funcional do desenvolvimento que conduz da inteligência sensório-motora à inteligência operatória aparecerá através de sucessivas estruturas, individuais ou sociais; o equilíbrio progressivo entre a assimilação das coisas à atividade do sujeito e a acomodação deste àquelas redunda, com efeito, na reversibilidade que caracteriza essas ações interiorizadas, que são as operações da razão: ao passo que o primado da acomodação distingue a imitação e a imagem, o da assimilação explica o jogo e único símbolo “inconsciente”. A Gênese da Imitação Como foi estabelecido por M. P. Guillaume num livro que renovou a questão, a imitação não assenta numa técnica instintiva ou hereditária: a criança aprende a imitar, e essa aquisição suscita, tanto quanto as demais, todos os problemas relativos à construção sensório-motora e mental. Essa conclusão continuaria sendo válida mesmo que a tendência para imitar comportasse um componente transmitido por hereditariedade, visto que uma coisa é uma tendência e outra coisa muito diversa é a técnica que lhe permite desenvolver-se. Iremos ainda mais longe e consideraremos a imitação pré-verbal da criança uma das manifestações da sua inteligência. Ao acompanharmos, passo a passo, a formação da imitação durante os dois primeiros anos, somos impressionados, com efeito, pela atividade propriamente dita que ela manifesta; durante esse período, a imitação nada tem de “automática” ou de “involuntária” (na acepção de não intencional), mas, pelo contrário, denuncia bem depressa a existência de coordenações inteligentes, tanto na aprendizagem dos meios que emprega como nos seus próprios fins. Além disso, existe uma conexão estreita, como veremos, entre as fases da imitação e as seis fases que distinguimos, anteriormente, no desenvolvimento da inteligência sensório-motora1 a tal ponto que nos serviremos desse mesmo quadro para descrever os fatos cuja análise empreenderemos em seguida. Ora, sendo esse o caso, é possível conceber desde já a interpretação seguinte. A inteligência sensório-motora pareceu-nos ser o desenvolvimento de uma atividade assimiladora tendente a incorporar os objetos exteriores aos seus esquemas, ao mesmo tempo que acomoda esses últimos àqueles. Na medida em que é procurado um equilíbrio estável entre a assimilação e a acomodação, pode- se falar, pois, de adaptação propriamente inteligente. Mas, na medida em que os objetos exteriores modificam os esquemas de ação do sujeito, sem que este, por seu turno, utilize diretamente esses objetos, ou, por outras palavras, na medida em que a acomodação predomina sobre a assimilação, a atividade se desenrola no sentido da imitação: esta constituiria, assim, o simples prolongamento dos movimentos de acomodação e compreender-se-ia o seu íntimo parentesco com o ato de inteligência de que ela apenas constituiria, portanto, um aspecto diferenciado ou uma parcela momentaneamente destacada. Inversamente, veremos em seguida que, quando a assimilação sobrepuja a acomodação, a atividade do sujeito se orienta, por isso mesmo, no sentido do jogo, que todos os intermediários ligam à adaptação inteligente e que constitui, assim, a recíproca da imitação. Enfim, compreender-se desde o início em que é que o problema da imitação conduz ao da representação: na medida em que esta constitui uma imagem do objeto (o que certamente é, nada mais sendo do que isso), deverá ser então concebida como uma espécie de imitação interiorizada, quer dizer, um prolongamento da acomodação. Quanto ao simbolismo da imaginação, nenhuma dificuldade existe em compreender como se apoia no do jogo. Portanto, é necessário acompanhar, passo a passo, os progressos da imitação, depois os do jogo, para chegarmos, num dado momento, aos mecanismos formativos da representação simbólica As Três Primeiras Fases: Ausência de Imitação, Imitação Esporádica e Inícios de Imitação Sistemática Em que nível do desenvolvimento devemos fixar o início da imitação? As variações dos autores a tal respeito mostram bem as dificuldades de uma separação nítida entre a imitação propriamente representativa e suas múltiplas formas preparatórias (ecoquinésia etc.). Wallon vai ao ponto de afirmar que “a imitação não sobrevém antes da segunda metade do segundo ano”,1 opinião admissível na hipótese de uma evolução mental por plataformas sucessivas, mas supõe, assim, a resolução antecipada do problema no sentido de uma oposição absoluta entre o representativo e o sensório-motor. Na realidade, mesmo que se chegasse, sem arbitrariedade, a entrosar as diversas fases da vida mental com as camadas neurológicas bem distintas (o que constitui uma tarefa muito legítima, mas a respeito da qual a história das teorias psicofisiológicas nos aconselha alguma prudência), subsistiria sempre que à descontinuidade relativa das estruturas corresponde uma certa continuidade funcional, de modo que cada uma dentre elas prepara as seguintes, utilizando, ao mesmo tempo, as precedentes. Não é absolutamente uma explicação o fato de se constatar o funcionamento sucessivo de aparelhos psiconeurológicos sobrepostos, mesmo indicando com exatidão como cada um integra os precedentes. A esse ponto de vista, natural para o clínico, o psicólogo desejoso de aproveitar os ensinamentos da embriologia experimental só pode opor o de uma comparação mais completa entre a psicogênese e a organogênese: as diversas fases que a embriologia distingue na construção do corpo vivo não são apenas, com efeito, caracterizadas por uma sequência de estruturações distintas e descontínuas, mas também por uma dinâmica cujo funcionamento requer, simultaneamente, a continuidade e uma certa direção, devendo esta ser concebida como uma tendência para o equilíbrio ou estado final do crescimento.2 Foi por isso que, ao estudarmos o nascimento da inteligência (ver N. I.), tivemos de remontar até o reflexo para acompanhar, sem praticarmos cortes arbitrários, a atividade assimiladora que culminou na organização de esquemas adaptados finais, pois só um princípio de continuidade funcional permite interpretar a diversidade infinita das estruturas. Analogamente, portanto, se chamamos imitação ao ato pelo qual um modelo é reproduzido (o que em nada implica a representação desse modelo, porquanto pode ser simplesmente “percebido”), encontramo-nos também na obrigação de acompanhar passo a passo, segundo as mesmas fases das atividades sensório-motoras em geral, todas as condutas que podem culminar nesse resultado, e isso a partir dos reflexos.