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Os últimos trabalhos que consagramos ao desenvolvimento do pensamento racional na criança – A Gênese do Número e O Desenvolvimento das Quantidades na Criança – focalizaram a constituição dos diversos sistemas operatórios em jogo na logicização e na matematização nascentes do real, pelo que o pensamento intuitivo ou representativo só foi abordado, assim, de modo algo negativo: tratava-se, sobretudo, de mostrar a sua insuficiência e a intervenção necessária das operações propriamente ditas para completar e corrigir esse pensamento. Mas a representação imaginada, ou intuitiva, suscita uma série de problemas que convém examinar por si mesmos, em função da sua própria gênese e não apenas da sua inserção final no quadro das operações (ou, mais precisamente, das articulações progressivas que a transformam, pouco a pouco, em pensamento operatório e reversível). Importa, pois, reconstituir os inícios da representação e procurar compreender o seu funcionamento específico; só então será possível elucidar as questões das relações entre a intuição e as operações, nos casos em que a primeira se prolonga nas segundas, e naqueles, também numerosos, sem dúvida, em que a representação imaginada conserva a sua vida própria, fora das segundas, como no jogo, na imitação, no pensamento simbólico etc. E mais. Antes de analisarmos a gênese das operações, tínhamos estudado – em O Nascimento da Inteligência na Criança e em A Construção do Real na Criança – a inteligência sensório-motora anterior à linguagem, isto é, a forma de inteligência que prepara, no terreno da ação elementar, o que mais tarde se converterá em operações do pensamento refletido. Portanto, convém agora procurar estabelecer a ponte entre a atividade sensório-motora que precede a representação, de um lado, e as formas operatórias do pensamento, do outro lado; e o problema equivale, de novo, a reconstituir os primórdios do pensamento representativo e a situar a sua evolução entre as duas fases extremas do sensório-motor e do operatório. É evidente que, tomados em sua mais lata acepção, esses diversos problemas suscitariam o do papel da linguagem. Mas essa questão já foi [{{type}} Annotation] abundantemente estudada. Por outra parte, nós também a abordamos em duas de nossas obras – A Linguagem e o Pensamento na Criança e O Juízo e o Raciocínio na Criança – do ponto de vista da socialização do pensamento. Não voltaremos, pois, a abordá-la aqui, senão a propósito dos primeiros esquemas verbais e dos “pré-conceitos”, tão característicos do nível de dois a quatro anos. Esforçar-nos-emos, pelo contrário, em mostrar que a aquisição da linguagem também está subordinada ao exercício de uma função simbólica, a qual tanto se afirma no desenvolvimento da imitação e do jogo quanto no dos mecanismos verbais. Os domínios em que vamos, sobretudo, estudar os inícios da representação infantil são, portanto, aqueles em que os processos individuais da vida mental predominam sobre os fatores coletivos, e nisso insistiremos mesmo no caso da imitação, que conduz à constituição de relações interindividuais sem delas derivar univocamente. Mas limitar-nos-emos às questões da gênese da representação em geral, só abordando a descrição das representações particulares na medida em que os fatos convergirem com os que já foram focalizados em nossas obras anteriores, A Representação do Mundo na Criança e A Causalidade Física na Criança.* Assim delimitados, os problemas que teremos de examinar no presente volume são ainda muito amplos. Trata-se, em primeiro lugar, e será esse o objetivo da primeira parte deste livro, de reconstituir a gênese da imitação.1 Já formulamos a hipótese (em O Nascimento da Inteligência) de que a representação deriva, em parte, da própria imitação. No seu admirável livro De l’acte à la pensée, que versa sobre os mesmos problemas de que nos vamos ocupar no presente volume, Wallon defendeu um ponto de vista análogo, o que é mais uma razão para reexaminarmos a mesma questão à luz dos fatos anteriormente reunidos sobre os nossos próprios filhos. Longe de podermos adotar todas as teses de Wallon, seremos levados, aliás, a rebatê-las muitas vezes. Mas a imitação constitui apenas uma das fontes da representação, à qual fornece, essencialmente, seus “significantes” imaginados. No outro extremo, e do ponto de vista das significações, sobretudo, pode-se considerar o jogo, ou atividade lúdica, como conduzindo igualmente da ação à representação, na medida em que evolui da sua forma inicial de exercício sensório-motor para a sua segunda forma de jogo simbólico ou jogo de imaginação. É mesmo no terreno da evolução do jogo que os processos assimiladores característicos do início da representação individual se revestem, sem dúvida, de sua mais evidente forma. Assim, dedicaremos a parte mais extensa desta obra (a segunda) ao estudo do jogo e dos fenômenos correlativos. Começaremos por reconstituir o nascimento do jogo, durante o primeiro ano, a título de introdução ao estudo do símbolo. Por outra parte, só reverteremos como simples recapitulação, para refrescar a memória, à questão dos jogos de regras, de que um exemplo particular (o jogo com bolas de gude) foi extensamente analisado em O Juízo Moral na Criança. Portanto, o jogo simbólico é que será essencial para nós, e, a seu respeito, seremos obrigados mesmo a ampliar a discussão até o problema do simbolismo “inconsciente” e do “pensamento simbólico” em geral, no sentido que lhe é dado pelos psicanalistas, de Freud a Silberer, a Adler e a Jung. Só depois de examinarmos os problemas da imitação, do jogo e do pensamento simbólico “inconsciente” poderemos então, numa terceira e última parte, situar nesse conjunto os primórdios da representação cognitiva e extrair as conclusões a que nos terão conduzido essas análises prévias, no tocante ao mecanismo da atividade representativa ou da função simbólica. São duas, essencialmente, as teses que vamos procurar desenvolver no presente volume. A primeira é que, no terreno do jogo e da imitação, pode-se acompanhar de maneira contínua a passagem da assimilação e da acomodação sensório-motoras – os dois processos que nos pareceram essenciais na constituição das formas primitivas e pré-verbais da inteligência – para a assimilação e a acomodação mentais que caracterizam os inícios da representação. A representação começa quando há, simultaneamente, diferenciação e coordenação entre “significantes” e significados”, ou significações. Ora, os primeiros significantes diferenciados são fornecidos pela imitação e o seu derivado, a imagem mental, as quais prolongam a acomodação aos objetos exteriores. Quanto às próprias significações, elas são fornecidas pela assimilação, que predomina no jogo e se equilibra com a acomodação na representação adaptada. Depois de se dissociarem progressivamente, no plano sensório-motor, e de se desenvolverem ao ponto de poder ultrapassar o presente imediato, a assimilação e a acomodação apoiam-se, pois, uma na outra, numa conjunção final que se tornou necessária por causa dessa mesma ultrapassagem; é essa conjunção entre a imitação, efetiva ou mental, de um modelo ausente e as significações fornecidas pelas diversas formas de assimilação que permite a constituição da função simbólica. É então que a aquisição da linguagem, ou sistema de signos coletivos, se torna possível e que, graças ao conjunto tanto de símbolos individuais como desses signos, os esquemas sensório-motores acabam por transformar-se em conceitos ou por desdobrar-se em novos conceitos. A nossa primeira tese, prolongando a de O Nascimento da Inteligência na Criança, será, portanto, a da continuidade funcional entre o sensório-motor e o representativo, continuidade essa que orienta a constituição de sucessivas estruturas. Ora, essa suposição não é de natureza axiomática, tanto assim que Wallon objetou: “Por mais que Piaget queira demonstrar a continuidade dessa progressão, ele não teve outro remédio senão introduzir dois termos que não estão contidos nos esquemas motores: o espírito e o símbolo.”2 Vamos, pelo contrário, tentar mostrar como o símbolo é preparado pelo esquematismo pré- representativo. Quanto ao espírito, desenvolver-se-á por si mesmo, indubitavelmente. A nossa segunda tese é a da interação das diversas formas de representação. Há representação quando se imita um modelo ausente. Assim acontece no jogo simbólico, na imaginação e até no sonho. Enfim, o sistema de conceitos e relações lógicas supõe a representação, quer em suas formas operatórias quer nas intuitivas. Quais são, pois, os elementos comuns a essas diversas representações, e poder-se-á sustentar que elas comportam mecanismos comparáveis? A psicologia associacionista clássica resolvia facilmente o problema fazendo derivar todas as representações de uma realidade única e simples: a imagem, continuação direta da sensação. Mas a própria imagem cria um problema, visto que, longe de prolongar imediatamente a percepção como tal, não parece intervir na vida mental antes do segundo ano de vida e faz-se mister procurar compreender como. Além disso, é apenas um significante, ou um símbolo, e impõe-se precisamente estudar, a fim de compreendermos o seu papel, as relações entre os diversos significantes e as diversas significações, em suma, toda a atividade representativa.