Read Aloud the Text Content
This audio was created by Woord's Text to Speech service by content creators from all around the world.
Text Content or SSML code:
A finitude humana e a questão da salvação. Gostaria que você compreendesse bem esta palavra — salvação — e percebesse também como as religiões tentam assumir as questões que ela levanta. Porque o mais simples, para começar a delimitar o que é a filosofia, ainda é, como você vai ver, situá-la em relação ao projeto religioso. Abra um dicionário e verá que salvação designa primeiramente e antes de tudo, o fato de ser salvo, de escapar de um grande perigo ou de uma grande desgraça. Muito bem. Mas de que catástrofe, de que perigo medonho as religiões pretendem nos fazer escapar? Você já sabe a resposta: é da morte, sem dúvida que se trata. Eis por que todas elas vão se esforçar, de diferentes formas, para nos prometer a vida eterna, para nos garantir que um dia reencontraremos aqueles que amamos: parentes e amigos, irmãos e irmãs, maridos e esposas, filhos e netos, dos quais a existência terrestre, inelutavelmente, vai nos separar. No Evangelho de João, o próprio Jesus vive a experiência da morte de um amigo querido, Lázaro. Como qualquer outro ser humano, ele chora. Ele simplesmente vive a experiência, como eu ou você, do dilaceramento ligado à separação. Porém, diferentemente de nós simples mortais, ele tem o poder de ressuscitar o amigo. Ele diz que faz isso para mostrar que o amor é mais forte do que a morte. E, no fundo, essa mensagem constitui o essencial da doutrina cristã da salvação: a morte. Para aqueles que amam, para aqueles que têm confiança na palavra do Cristo, é apenas uma aparência, uma passagem. Pelo amor e pela fé, podemos alcançar a imortalidade. O que vem bem a propósito, é preciso confessar. O que desejamos, de fato, acima de tudo? Não queremos ficar sozinhos, queremos ser compreendidos, amados, não queremos ficar separados dos próximos, em resumo, não queremos morrer, nem que eles morram. Ora, a existência real, um dia ou outro, frustra todas essas expectativas. É, pois, na confiança em um Deus que alguns procuram a salvação, e as religiões nos asseguram que eles a conseguirão. Por que não, se a pessoa crê nisso e tem fé? Mas, para aqueles que não estão convencidos, para aqueles que duvidam da veracidade dessas promessas, o problema, é claro, permanece. E é justamente aí que, por assim dizer, entra a filosofia. Tanto mais que a própria morte — a questão é crucial se você quer compreender o campo da filosofia, — não é uma realidade tão simples quanto se pensa habitualmente. A questão não se resume ao fim da vida, a uma parada mais ou menos brutal da nossa existência. Para se tranqüilizarem, alguns sábios da Antiguidade diziam que não se deve pensar na morte, pois, das duas uma, ou estou vivo, e ela, por definição não está presente, ou então ela está presente, e, também por definição, eu não estou presente para me afligir! Por que, nessas condições, se preocupar com um problema inútil? O raciocínio, infelizmente, é por demais conciso para ser honesto. Pois a verdade é que a morte, ao contrário do que sugere o provérbio antigo, possui faces diferentes cuja presença é, paradoxalmente, perceptível no próprio coração da vida mais viva. Ora, é exatamente isso o que num momento ou noutro, atormenta esse infeliz ser finito que é o homem, já que apenas ele tem consciência de que o tempo lhe é contado, que o irreparável não é uma ilusão, e que é preciso que ele reflita bem sobre o que deve fazer de sua curta vida. Edgar Allan Poe, num de seus mais famosos poemas, encarna essa ideia da irreversibilidade do curso da existência num animal sinistro: um corvo empoleirado na beira de uma janela, que só sabe dizer e repetir uma única fórmula: Never more — “nunca mais”. Poe quer dizer que a morte designa em geral tudo o que pertence à ordem do nunca mais. Ela é, no cerne mesmo da vida, o que não voltará mais, o que pertence irreversivelmente ao passado, e que nunca mais poderemos reencontrar. Podem ser as férias da infância, passadas em lugares e com amigos de quem nos afastamos sem possibilidade de volta, o divórcio dos pais, as casas ou as escolas que uma mudança nos obriga a abandonar, e mil outras coisas: mesmo que não se trate sempre do desaparecimento de um ser querido, tudo o que é da ordem do nunca mais, pertence ao registro da morte. Você vê o quanto ela, a morte, está longe de se resumir apenas ao fim da vida biológica. Conhecemos inúmeras encarnações de morte no próprio seio da existência, e essas múltiplas faces acabam nos atormentando sem que o percebamos inteiramente. Para viver bem, para viver livremente, com alegria, generosidade e amor, precisamos antes de tudo, vencer o medo — ou, melhor dizendo, “os” medos, tão diversas são as manifestações do Irreversível. Mas é justamente aí que religião e filosofia divergem, de maneira fundamental.